Junho, o mês do verão, com o dia mais longo do ano por esses lados onde eu vivo, as festas ancestrais pela vida, pelo calor. Do outro lado do oceano, de onde eu vim, junho é o mês do inverno, do dia mais curto do ano, do frio, mas nunca tão frio como o frio daqui. O planeta está em constante mudança e renovação. Apesar de nós. E essa é uma lição rica da natureza: precisamos estar dispostos a mudar. Mudar para melhor, que fique claro.
Mas mudança não é um verbete que nosso cérebro aceita bem. Mudanças complexas, de quem precisa tomar decisões e mudar de rumos, não são nada bem-vindas. Essa que lhes escreve, por exemplo: comecei um curso, imaginei que seria entendiante. Dia após dia eu fiquei mais encantada. Existem vozes que gritam dentro da gente e a gente as cala. Porque estamos velhas demais para mudar o curso da vida. Porque a minha vez já passou. Porque vai levar tempo. Porque o que vão pensar de mim. Porque eu já tenho uma formação acadêmica. Porque vai demandar muito esforço e energia. Porque tenho filhos e rede de apoio escassa. A lista de porquês que nos impede de mudar, é extensa e compreensível.
Segundo estudos científicos, quando estamos habituados a uma situação, mesmo que desconfortável, dificilmente vamos sair dela. Estava lendo sobre testes que fizeram com cachorros na década de 1960. Um cachorro numa jaula começa a levar choques. Nessa jaula havia uma alavanca. Cada vez que as sessões de choques se iniciavam, o cachorro entrava em desespero, até que por acaso, ele apertou a alavanca e percebeu que ela fez a sessão de choque parar. A partir de então, a cada sessão de choque iniciada, aquele cachorro já sabia o que fazer parar acabar com seu sofrimento. Numa outra jaula, um cachorro sofria com as mesmas sessões de choque. Mas não colocaram uma alavanca nela. A princípio ele pulava desesperado. Com o passar do tempo, cada vez que as sessões de choque reiniciavam, ele se deitava. Ele aceitou que aquele era seu destino. Mesmo após os pesquisadores colocarem uma alavanca na jaula que, assim como a outra, pausaria o choque, o cachorro seguiu com o mesmo hábito de deitar e sofrer. Ele não aprendeu desde o início que a alavanca poderia ajudá-lo e mesmo olhando para ela depois, ele nem mesmo tentou. Talvez por não conseguir associar a alavanca com uma mudança na sua condição, talvez por não querer tentar mesmo.
Essa pesquisa hoje seria impossível de acontecer, é maus-tratos a animais, ainda assim ela ilustra como o cérebro costuma odiar mudanças. Mesmo quando estamos sob maus-tratos. Se você viu algum paralelo entre a sua vida e essa história que eu contei, então respira fundo e procura sua alavanca. Pois muitas vezes estamos em uma situação como a do cachorro na jaula. Sofrendo, levando choques diários, e assim nos acostumamos com ela. Apenas nos deitamos e esperamos o pior passar. O resto do tempo vivemos na ansiedade de que em algum momento o choque vai voltar. E volta. E a cena se repete.
Eu tinha uma esperança ingênua (não seriam todas as esperanças ingênuas?), logo eu conseguiria pagar minhas contas com a escrita. Desde 2019 eu me assumi escritora. Desde 2019 eu me divido entre mãe de crianças pequenas, escritora, menina do marketing, facilitadora de oficinas de escrita, mentora de escrita. E apesar de trabalhar muito, o retorno financeiro ainda não é suficiente para pagar todas as despesas que incluem casa + despesas para o combo da escrita. Precisei encarar a situação de frente, fazer esse novo curso totalmente fora da minha formação acadêmica, buscar a segurança e independência financeira plena. E com a escrita. Eu tive muito medo. Poucos dias antes de meu curso começar, eu estava apavorada. Eu queria chorar, queria desistir de tudo. Que loucura eu fui inventar? E se for tudo confusão da minha cabeça? E se na verdade nada é tão ruim assim e eu que estou inventando tudo isso?
Como vou dar conta de trabalho e crianças? E se eu não conseguir?
E aí vem novamente uma sessão de choques. A alavanca. Eu aprendi a usar a alavanca. Cada dia de curso me devolve a mim mesma. Voltar a andar de cabeça erguida. Voltar a cuidar da minha vida. Não existe nada mais prazeroso e poderoso do que cuidar da própria vida. Seja lá qual for a sessão de choque que tem te jogado no chão, eu te digo com experiência própria: puxe a alavanca. Seja no trabalho, no relacionamento amoroso, na família. Não há hábito no mundo que deva te aprisionar no sofrimento, nos maus-tratos e te impedir de dar um passo para a mudança. Enfrente seu cérebro e o medo de mudança: puxe a alavanca.
Notas literárias
“Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida, é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.”
Adélia Prado é uma das mais importantes poetas e escritoras brasileiras contemporâneas. Nascida em 13 de dezembro de 1935, em Divinópolis, Minas Gerais, ela começou sua carreira literária aos 40 anos, quando enviou seus poemas a Carlos Drummond de Andrade. Impressionado com sua obra, Drummond ajudou a lançar sua carreira ao recomendar a publicação de seus escritos. Em 1976, estreou com o livro de poesia Bagagem, que rapidamente a consagrou no cenário literário brasileiro.
Adélia Prado se destaca pela sua linguagem simples. Porém, jamais confundam simplicidade com simplório. Noemi Jaffe explica no seu livro Escrita em movimento: sete princípios do fazer literário, a etimologia da palavra simples. Essa explicação é surpreendente.
“As palavras “simples”, “complexo”, “complicado”, “explicar” e outras semelhantes têm todas uma mesma origem etimológica. O radical pl, como deve soar familiar, está relacionado a dobra. Daí o plié francês, tão utilizado nas aulas de dança, e também o “plissado”, ou o efeito de várias dobras num tecido. Originalmente, simples queria dizer “sem dobras”; “complexo” e “complicado”, “com dobras”; e “explicar”, “desfazer as dobras”. A etimologia nos ajuda a compreender melhor o sentido da simplicidade, ao associá-la à lisura e, por extensão, à fluência.”
E o texto de Adélia Prado tem fluência, explorando temas como a religiosidade, o cotidiano, o feminino e a condição humana. Sua escrita é marcada pela sensibilidade e pela capacidade de transformar o trivial em poesia.
A autora já recebeu o Prêmio Jabuti em 1999 na categoria de Poesia por seu livro Oráculos de Maio, um reconhecimento importante no cenário literário brasileiro. No dia 20 de junho desse ano, ela foi honrada com o Prêmio Machado de Assis pela Academia Brasileira de Letras, um dos mais prestigiados prêmios literários do Brasil, que celebra o conjunto da obra de um autor.
Seis dias depois, Adélia Prado recebeu o Prêmio Camões, o maior prêmio literário da língua portuguesa. É a terceira autora brasileira a receber o prêmio, antes dela Rachel e Lygia Fagundes Telles trouxeram o prêmio para o Brasil. Este prêmio reconhece sua contribuição significativa para a literatura de língua portuguesa e destaca a importância de sua obra no contexto internacional.
Adélia Prado merece muito ser celebrada por sua habilidade única de capturar a beleza e a complexidade da vida em suas palavras. Um viva às nossas escritoras!
Técnica de escrita criativa
Uma das ferramentas básicas da escrita criativa são as figuras de linguagem. E justamente por serem básicas, a grande maioria das pessoas as descartam assim que a prova de português na escola passou. Ser básico, nesse sentido, significa ser a base sem a qual tudo desmorona. E de verdade, sem conhecer as figuras de linguagem e sem dominá-las, a escrita não se sustenta. As figuras de linguagem compõem o estilo de autores. Por isso mesmo o estudo delas é chamado de estilística. Elas despertam o interesse de estudiosos desde a antiguidade. Mas por que esse nome figura? O autor Erich Auerbach, em seu ensaio “Figuras”, explica:
“Etimologicamente, a palavra "figura" vem da mesma raiz que "fingere", "figulus", "factor" e "effigies", e significa "forma tridimensional". (…) A palavra "figura" é derivada diretamente da raiz e não, como no caso de "natura" e outras palavras que têm o mesmo sufixo, do supino. (…) Em todo caso, essa forma especial da palavra expressa algo animado e vivo, aberto e brincalhão, e a alta elegância de seu som parece ter seduzido muitos poetas. (…) "Figura" dá uma impressão maior de algo disponível aos sentidos. Além disso, é mais dinâmica do que "forma" e preserva a identidade do original de forma mais exata do que "imago".
Ou seja, segundo ele, as figuras dão forma concreta ao que se referem e trazem elegância e sonoridade a escrita. Em homenagem a nossa poeta Adélia Prado, hoje eu quero dar duas dicas para quem quer trazer sonoridade ao seu texto ou poema: duas figuras de linguagem sonoras importantes para a escrita sonora e poética - aliteração e assonância:
A aliteração é a repetição de sons consonantais em uma sequência de palavras próximas.
Exemplos de aliteração:
“Boi bem bravo, bate baixo, bota baba, boi berrando… Dança doido, dá de duro, dá de dentro, dá direito… Vai, vem, volta, vem na vara, vai não volta, vai varando…” (O burrinho pedrês— Guimarães Rosa)
“Naquela nuvem, naquela,
mando-te meu pensamento:
que Deus se ocupe do vento.” (Improviso do Amor-Perfeito – Cecília Meirelles)”
A assonância é a repetição de sons vocálicos em palavras próximas, criando uma harmonia sonora.
Exemplos de assonância: “Menina bonita do laço de fita.” (Menina bonita do laço de fita – Ana Maria Machado)
“Arabela
abria a janela
Carolina
erguia a cortina
E Maria
olhava e sorria:
Bom dia!”
(As duas velhinhas – Cecília Meireles)
“Eu pus os meus pés no riacho
E acho que nunca os tirei”
(Força Estranha — Caetano Veloso)
Tanto a aliteração quanto a assonância criam ritmo e sonoridade ao texto e podem ser aplicadas não apenas em poemas, quanto também na prosa.
Exercícios de escrita criativa
1. Aliteração
- Escolha uma consoante e escreva um poema curto em que a maioria das palavras comece com essa letra. Experimente diferentes ritmos e sons para criar uma melodia interna no texto.
2. Assonância
- Escreva um parágrafo descrevendo uma cena da natureza, utilizando a repetição de sons vocálicos. Foque em como essas repetições podem evocar sentimentos ou criar uma atmosfera específica.
Divirta-se explorando os sons das palavras!