Estética, infância e educação autônoma
Eu prometi a mim mesma que, apesar de estar num curso de pegdagogia para educação infantil, eu não transformaria isso em conteúdo. E puta que pariu, falhei miseravelmente nessa promessa…
Como boa feminista-materialista histórica-decolonialista, eu vejo na educação o pilar de mudança na sociedade. A chave da revolução. Crianças poderiam ser a renovação, a mola propulsora para perspectivas novas, jamais pensadas. No entanto, desde um princípio, nós as limitamos. E não falo nos limites necessário a sua existência, ou aqueles que as impede de machucar umas as outras. Nós as limitamos com nossas próprias limitações.
Oferecer liberdade na educação às crianças desde muito cedo é plantar nelas a sementinha da inquietação com o mundo. Quem uma vez experimentou da liberdade, dificilmente vai aceitar os aprisionamentos que a política, cultura e sociedade tentam impor. Para mim pessoalmente essa questão é de sume importância pois eu trabalho muito com tantas crianças imigrantes ou filhas de imigrantes. Em sala eu olho para elas e penso em Fanon:
“ O que há é minha vida, presa na armadilha da existência. Há minha liberdade, que me devolve a mim próprio. (...) Um homem, no início de sua existência, é sempre congestionado, envolvido pela contingência. A infelicidade do homem é ter sido criança.”
Pele Negra, Máscaras brancas
Não é exagero. É leitura de mundo. Ao encarar a educação infantil como processo revolucionário, é necessário refletir sobre o que estamos ofertando a essas crianças. Por isso, essa newsletter vai ser dividida em duas. Aqui eu quero trazer a relação da criança com a arte, desenho, estética, literatura. Talvez você ainda não compreenda, mas o que Fanon disse faz todo sentido aqui dentro desse contexto de educação, arte, expressão do Self: torna-se cada vez mais urgente oferecermos às crianças um ambiente de livre criação, sem elogios ou críticas carregados de nossa própria percepção já distorcida (colonizada) do mundo. Precisamos de pessoas que se sintam capazes de criar, de fazer, de ter prazer na experimentação pela simples experimentação. Na parte dois dessa newsletter que ainda vai ser publicada, eu quero trazer algumas perspectivas diferentes, beeeeem resumidas, sobre estética e arte na filosofia.
E para ajudar você que está aí de alguma forma envolvido ou envolvida com crianças a compreender o que aqueles rabiscos sem sentido representam para elas e como isso pode ser fator determinante para seu desenvolvimento cognitivo, emocional, motor etc., eu resolvi compartilhar o que me levou a escrever essa newsletter tão off-topic por aqui.
Toda essa reflexão sobre arte, sobre estética, sobre permitir que as crianças desenvolvam seu próprio senso estético, tudo isso começou enquanto eu estudava com livro em alemão chamado: “Kinder, Kunst und Kompetenzen: Kreatives Gestalten in der Sozialpädagogik” “Crianças, arte e competências: Criação criativa na Pedagogia Social”.
Esse livro defende que, sob hipótese alguma, você deva elogiar e muito menos criticar a manifestação artística da criança. A criança fez um desenho e quisr te mostrar? Então peça a ela que ela te conte o que ela desenhou, qual foi a ideia dela, o que aquilo representa. Deixe a criança pensar sobre o que ela mesma criou de forma autônoma. Os elogios funcionam como uma forma de recompensa e ao elogiar as crianças por aquilo que elas fazem, você as condiciona a depender de recompensas como propulsão para fazer coisas. E a ideia é que as crianças façam as coisas simplesmente pelo prazer e vontade de fazê-las. Isso tanto na parte da arte como em outras também.
Vou mostrar de forma resumida as fases das crianças no desenvolvimento do desenhar, e falar um pouco sobre como a capacidade e vontade de representar o mundo nasce junto com o serumaninho.
Por que será que é mais atrativo riscar a parede do que o papel em cima da mesa? O livro defende que o envolvimento da criança com arte não deve jamais ser limitado ao sentar na cadeira e pintar ou desenhar. A criança ao trabalhar com arte coloca ali toda sua emoção, percepção de mundo e experiências corporal. Por isso, o trabalho artístico pode e até deve ser em movimento livre. A criança precisa de todo seu corpo (e alma) para criar e isso não deveria ser limitado.
Fase pré-figurativa (1 a 3 anos):
A fase de rabiscos aparentemente sem sentido, porém totalmente relacionado com a expressão emocional, motora e cognitiva da criança. Você pode não ser capaz de ver, mas dentro de cada rabisco existe um significado profundo para a criança. As obras iniciais das crianças nessa fase compreendem os rabiscos, os círculos, espirais, cruzamento de linhas, preenchimento de linhas com pintura e o trabalho rítmico entre espaço e o desenho.
Fase figurativa e o início do realismo infantil
(3 a 6 anos)
As formas básicas criadas de forma espontânea na fase anterior começam a ser combinadas nessa fase. Elas comecam a ser trabalhadas em mais detalhes. O tema principal da criança aqui é a reprodução de pessoas. Os pés muitas vezes podem estar integrados à cabeça e existe uma explicação: A crianca se reconhece como ser em movimento no mundo. Ela ainda não diferencia bem mãos e pés e muito menos a quantidade de dedos. Então ela passa por vários estádios da reprodução da imagem humana, até chegar na forma mais proporcional. O livro destaca as seguintes possíveis etapas no desenho infantil:
Imagem raio x: A criança desenha o que sabe e por isso costuma desenhar o que está dentro dos objetos.
3D: A criança não tem noção de perspectiva e por isso elementos da imagem estão todas no mesmo plano
Imagens simultâneas: Acontecimentos temporais e em locais diferentes são retratados numa mesma imagem
Tamanho e proporção: No desenho infantil, o tamanho e a proporção não tem relação com a realidade, mas sim com a importância para a criança
Forma e cores: Têm uma relevância simbólica para a criança. Por exemplo um cavalo que tem a barriga verde simboliza a grama que o cavalo comeu.
Ângulo reto: A criança experimenta bastante formas com o ângulo reto, como o tronco da árvore, a casa, o chaminé...
A história por detrás da imagem: Como eu já disse na introdução, a imagem criada pela criança é um universo único, diretamente relacionado com vivências, observações e emoções das crianças. Vale muito a pena conversar com a criança sobre aquilo que ela está desenhando ou desenhou. Obviamente caso ela esteja disposta a isto. Mas é muito comum que ainda no processo do desenhar, a criança o faça falando, contando a história, conversando. Todos os sentidos das crianças trabalham juntos para a construção da imagem. A criança representa na imagem o que ela vê e conhece do mundo, mas também símbolos, como estereótipos de gênero, quando ela desenha pessoas definindo o gênero por calça ou saia.
Movimento: As crianças tentam trazer movimento para suas imagens quando por exemlo, ao desenhar o sol, elas rodem varias vezes o lapis ou a caneta. A repetição de movimentos e linhas gera a ideia do movimento para as crianças.
A fase do realismo visual (1a a 4a série)
A criança consegue a partir daqui desenvoler imagens com mais riquezas de detalhes e usa mais símbolos em seus desenhos. Ela passa a desenhar aquilo que ela vê e não mais o que sabe. Os símbolos individuais e emocionais desaparecem nessa fase. Ela comeca a experimentar a perspectiva, se interessa pela proporção de formas e pela combinação de cores de forma mais realista. O corpo humano já não se resume a formas geométricas, mas ganha tracos mais orgânicos.
Os objetos desenhados são lançados no papel de forma cartográfica, a criança tenta representar em duas dimensões o que ela observa no mundo. A experimentação com a perspectiva, trabalho com diferentes plano, começa aqui.
Também surge aqui o medo de desenhar errado. A criança costuma a se interessar por copiar imagens mais realistas, justamente por ter medo de errar. O perigo da criança se desencorajar a continuar desenhando aqui é grande. Eu mesma parei de querer desenhar nesse período, quando na primeira série a professora da escola não exibiu um desenho meu, pois segundo ela, estava muito feio. Meu desenho foi o único a não ser exposto. Depois disso eu parei de ter vontade, prazer de desenhar e acreditei não ser capaz. Por isso, quando eu entrei na Bauhaus, eu me permiti experimentar mais. Saíram algumas coisas interessantes, perdi o medo, mas também não consegui criar um hábito de desenho. Quando tenho vontade, tiro tempo e faço, mas não é algo que faz parte (ainda) do meu cotidiano. Quem sabe um dia?
Conto isso, pois somos nós, adultos, com nossa expectativa por um desenho “feito de maneira correta”, que tiramos das crianças o prazer de viver essas fases do desenvolvimento artístico, principalmente dentro do ambiente escolar, onde ainda existe nota em artes, ou uma escolha dos melhores desenhos para serem apresentados. Isso pode ser destrutivo para a autoestima das crianças, pois arte tem sim muito a ver também com autoestima e autorealização. Além disso, as crianças perdem a autonomia de seus próprios processos para encontrar seu próprio caminho criativo.
Para finalizar, vale lembrar que o processo de desenvolvimento da criança é amplo, a criança aprende o tempo todo com tudo e suas areas de desenvolvimento estão todas conectadas de forma interdisciplinar.
O desenho está realcionado ao processo de aprender a escrever e ler. Deixar crianças expostas a livros infantis, a desenhos, arte, letras, ler com crianças, tudo isso é incentivo que pode posteriormente facilitar o processo de alfabetização. Desenhar também está diretamente interligado com o desenvolvimento do pensamento matemático, a noção de espaço, de tempo, de velocidade, de formas, da lógica. Isso sem contar o apoio ao desenvolvimento motor. Ofereça às crianças materiais e espaços de criação. Não as limite a sentar na cadeirinha para desenhar. As deixe desenhar em pé, num cavalete, ou no chão. Desenhar na areia, na terra, desenhar com o caldinho de feijão. Vale tudo para oferecer as crianças o seu desenvolvimento e sua autoafirmação no mundo, sem expectativas de resultados. Deixemos a crianças apenas serem crianças.
Notas literárias
Aniversário dele que tem tudo a ver com essa Newsletter
Eu preciso confessar que eu não sou lá de muito planejamento. Minha escrita e meus temas fluem e muitas vezes algumas coisas se encaixam de uma forma impressionante. Como hoje, dia que sai essa newsletter falando da relação das crianças com arte, estética e literatura, ser justamente o aniversário de Maurício de Souza! 89 anos e mais de 200 personagens que marcaram nossa infância.
Tem um vídeo do Maurício conversando com Ziraldo e o ponto em comum entre os dois era que a família os permitam rabiscar as paredes sem repressão. Lembra bastante o que falei no texto, não?
Eu aprendi a ler com os gibis da Turma da Mônica. Mais alguém aqui?
Parabéns ao Maurício e vida longa a ele e a turminha mais maravilhosa desse mundo!
Exercício de Escrita Criativa - “Redescobrindo o Desenho da Infância”
Para você que leu todo esse texto, esse exercício é bem óbvio. Eu imagino que ao ler sobre desenho na infância, você não apenas pensou nas crianças com quem você convive, mas também em muitas memórias da sua infância foram ativadas.
Esse exercício vai te ajudar a resgatar memórias e explorar como a sua relação com o desenho, a arte e a liberdade de criar mudaram ao longo do tempo.
Passo 1: Memórias visuais
Pense em um momento específico da sua infância em que você desenhou algo que te marcou. Pode ser qualquer coisa: um rabisco sem sentido para os adultos, um desenho para um ente querido, ou algo que representava seu mundo interior.
Anote essa memória em detalhes. Como você estava se sentindo? Onde você estava? Havia alguém com você? Lembre-se das cores, do cheiro do papel ou da textura do lápis que usou.
Passo 2: O “por quê” do desenho
Pergunte-se por que aquele desenho era especial. Foi uma forma de expressar alegria, medo ou curiosidade? Como o desenho te ajudou a entender algo sobre o mundo ou sobre si mesmo(a)?
Escreva sobre a importância que essa criação tinha para você e sobre como você se sentia quando alguém olhava para o seu desenho. Você recebia elogios? Críticas? Como isso afetava o seu desejo de desenhar?
Passo 3: Reflexão: arte infantil e liberdade
Agora que você relembrou esse momento, reflita sobre como essa experiência influenciou sua visão atual sobre arte e criação.
Se você pudesse voltar no tempo e “conversar” com o seu eu infantil, o que diria para ele sobre desenhar e criar? Você encorajaria essa criança a desenhar sem se preocupar com o resultado? Anote suas reflexões.
Se você se sentir pronto ou pronta, escreva uma carta para seu eu infantil, ou então um conto ou uma crônica onde você traz um momento específico dessa sua relação com desenho. Se for conto, você pode trazer um diálogo interno, percepções, ou pode acrescentar um ou dois adultos que foram importantes (tanto de forma positiva ou negativa) nesse processo. Se for carta, não precisa ser você como eu adulto, o autor da carta, pode ser um bicho de estimação, uma mosca, um objeto da casa, o lápis. Enfim, deixe sua imaginação e fantasia bem livres. E se você quiser, associe ao texto um desenho seu. Desenhe de forma livre, sem amarras, sem medo de críticas (da sua própria crítica, do seu próprio julgamento).
Na próxima Newsletter eu vou trazer algumas correntes teóricas para ampliar a ideia de estética e deixar como ponto de partida para você começar a fazer sua própria pesquisa, caso você queira, é óbvio!