Memórias made in Brazil
Após 12 anos eu volto ao Brasil e sou confrontada com minhas memórias. Um texto sobre memórias afetivas, sobre apego e desapegos, sobre raízes, Terra, casa, mercado e nostalgia.
A casa está lá. Mas diferente de antes. O murinho baixo que acompanhava a escada por onde eu escorregava na infância foi elevado até a altura da laje. A casa está lá, mas não tem eles. Falta ela contando os causos e ouvindo causos. Cada história engraçada ela sorria, levava a mão a boca e soltava um “agora vê!”. Não tem aquele sorriso dela, mas eu a imagino aqui no meio. Nessa coisa estranha que virou essa casa. Imagino o vô trazendo os docinhos para as crianças, entregando meio escondido para os adultos não verem e proibirem. Eles não conheceram os bisnetinhos que estão correndo pelo quintal agora. Nesse mesmo espaço as gerações se reúnem. A casa está diferente. Reformada, dividida, parte dela foi alugada. Outra parte é memória. Estranho esses lugares que viram lembranças.
Lembranças como o prédio onde eu morei por um ano, entre os sete e nove anos de idade. Era um prédio novo, morávamos num apartamento pequeno, mas tão bonitinho. Minha última referência de casa de verdade na infância. Passei pela rua de carro, mostrando para as crianças meu caminho de escola, e me deparo com aquele lugar que está tão vivo e bonito na memória, porém ruína. Foi um susto, eu nem soube o que falar com as crianças. O presente, o passado num contraste que aponta para um futuro. Em alguns anos aquele lugar provavelmente dará abrigo a outro prédio, talvez maior, mais moderno, em alguma política de revitalização que dará aos herdeiros a chance de fazer algo ali e lucrarem com isso.
Em meio a política e economia, restarão os fantasmas de lembranças que não se encaixarão bem naquele espaço. Essa questão de lugares e tempo sempre me encantaram. Na Bauhaus eu fiz dois trabalhos de fotografia relacionados a isso. Encanta e assusta. Não entendo quem não compreende a importância da Terra para os povos originários. Se para mim, dói ver minhas memórias afetivas serem destruídas de forma negligente, imagine para quem, mais do que memória afetiva, tem um apego espiritual e de irmandade com o espaço onde habita?
Eu, mesmo tendo morado naquele lugar com meus pais, eles pagando aluguel, eu me sinto violada em ver o abandono daquele lugar, um dos últimos onde eu tive um mínimo de estabilidade na minha ingenuidade infantil, talvez o último lugar e onde eu pude ser uma criança por completo. Pois a casa onde passei dos nove aos dezessete anos, foi uma casa de terror lúdico, onde eu me desenvolvi, onde eu fui obrigada a deixar de ser criança, por mais que eu quisesse continuar sendo uma. Onde eu conheci a desigualdade de classe, de gênero, onde eu conheci a violência doméstica, onde eu sonhei, chorei e quis morrer pela primeira vez, mas onde eu também amei muito, e só não enlouqueci por ter um irmão mais novo que me mantinha próxima ao mundo fantástico das crianças e porque eu tinha muita, mas muita natureza por perto.
Morei dentro da Mata Atlântica. Eu estava sempre descalça pelo quintal a fora. Já pisei em cobra que simplesmente fugiu de mim. Convivi com aranhas caranguejeiras, com escorpiões, com lagartos. Tantos animais diversos. Os únicos animais que nos fizeram mal, em tantos anos morando na selva, foram os humanos. Acho que essa foi a. Lição mais dura que aprendi ali. Aprendi a amar mais a natureza do que as pessoas. Mesmo amando as pessoas, entendi que a natureza está tão além de nós. Mas memória, natureza, amor, cuidado, isso nao cabe numa lógica capitalista e mercadológica.
Que fique claro: nós não temos que salvar a natureza. Nós temos que salvar a nós mesmos. A natureza se refaz, ela não depende de nós. Ela vai ter que nos destruir para se reconstruir, pois não fomos capazes de viver em harmonia com ela. Eu tenho plena consciência disso e não consigo ter um mínimo de pena da humanidade. Nesse sentido, às vezes me sinto culpada. Porém, ao visitar algumas praias, ao ver a quantidade de lixo que o oceano devolve e ter uma noção da existência de uma quantidade muito superior que ele se vê obrigado a esconder debaixo de suas águas, eu realmente sinto que merecemos o futuro de extinção para o qual estamos caminhando. Ainda mais ao lembrarmos que essa sujeira visível, causada por meros mortais, em nada se iguala ao nível de destruição causada por empresas ao redor do mundo, empresas energéticas (países da Europa que por décadas depositaram lixo das usinas nucleares no oceano Atlântico norte), alimentícias, petrolíficas.
Nesse momento, desanimo da política, desanimo da utopia. Porque não dá mais tempo. A ignorância e o fanatismo são pandêmicos. No entanto, sigo dentro da ética. Estar longe ou, pior, fora da ética, é uma transgressão, já dizia Paulo Freire. É essa ética que não me permite morrer sem tentar, mesmo sabendo que a batalha por uma humanidade consciente e em paz com a natureza, com as raízes, com a nossa Casa e memórias, essa batalha parece estar perdida. Me apego às memórias, sempre tive esse pé nostálgico, me apego também à raiva, combustível para seguir lutando a batalha perdida. Até virar lembranças. Até lá, lutando poeticamente. Da poesia viemos, a poesia voltaremos.